G L O B A L I Z A Ç Ã O
Origem: Folha de São Paulo
            Globalização diminui as distâncias e
            lança o mundo na era da incerteza
 

             "Ao mesmo tempo que o capital
             tende, por um lado,
             necessariamente, a destruir todas as
             barreiras espaciais opostas ao
             tráfego, isto é, ao intercâmbio, e a
             conquistar a terra inteira como um
             mercado, ele tende, por outro lado,
             a anular o espaço por meio de
             tempo, isto é, a reduzir a um
             mínimo o tempo tomado pelo
             movimento de um lugar ao outro.
 

            Karl Marx, in "Manuscrits de 1857-1858 (Grundrisse)"
 

            CLÓVIS ROSSI
            do Conselho Editorial

            A notícia do assassinato do presidente norte-americano Abraham
            Lincoln, em 1865, levou 13 dias para cruzar o Atlântico e chegar
            à Europa.
            A queda da bolsa de valores de Hong Kong, na semana passada,
            levou 13 segundos para cair como um raio sobre São Paulo e
            Tóquio, Nova York e Tel Aviv, Buenos Aires e Frankfurt. Eis, ao
            vivo e em cores, a globalização. Não como fenômeno teórico, que
            já produziu um punhado de livros, "papers", ensaios e muita
            incompreensão. Mas como um fato da vida real.
            "A globalização não é apenas palavra da moda, mas a síntese das
            transformações radicais pelas quais vem passando a economia
            mundial desde o início dos anos 80", resume o economista
            Eduardo Gianetti da Fonseca, da Universidade de São Paulo.
            O único exagero nessa descrição sumária é o de tomá-la como
            "palavra da moda" indiscriminadamente. Pesquisa Datafolha, feita
            em maio, mostra que 57% dos brasileiros jamais ouviram falar na
            "palavra da moda". Mesmo entre os entrevistados com nível de
            escolaridade superior, 14% ignoram o termo.
            Não importa. Ela não pede licença para afetar os que sabem do
            que se trata e os que nem sequer ouviram mencionar a "palavra da
            moda", como tenta mostrar este caderno especial. Afeta o
            presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Em
            entrevista exclusiva, o presidente admite que o fenômeno "limita
            efetivamente o âmbito de ação dos Estados nacionais". Ou seja,
            limita o seu próprio poder de impor políticas.
            A semana que está terminando é um exemplo definitivo: o governo
            brasileiro vinha reduzindo a taxa interna de juros gradativamente e
            não via motivo algum para não continuar a fazê-lo.
            Até que a queda da bolsa de Hong Kong mudou tudo e obrigou a
            equipe econômica a duplicar a taxa de juros, com todo o cortejo
            negativo de efeitos que produz. Não porque tenha mudado o
            quadro interno. É o efeito da globalização, ou seja, da
            interdependência crescente entre países e mercados.
            Mas a globalização afeta igualmente os 57% que, ao contrário de
            FHC, não sabem do que se trata.
            Desde 1960, os pobres, para os quais globalização não é "palavra
            da moda", ficaram mais longe, muito mais longe, dos ricos: os
            20% mais ricos do planeta tinham, em 1994, uma renda 78 vezes
            superior à dos 20% mais pobres.
            Em 1960, a diferença já era grande, mas infinitamente menor (30
            vezes).
            A globalização atinge diretamente mesmo aqueles que se
            globalizaram, mas não têm necessariamente consciência do
            fenômeno. Exemplo: o jogador de futebol Ronaldinho.
            Um dos anúncios que ele protagoniza foi criado por uma agência
            norte-americana, para vender no Brasil os produtos da
            multinacional também norte-americana Nike, mas fabricados em
            países da Ásia, como Vietnã ou Indonésia.
            A globalização não é apenas, talvez nem principalmente,
            econômica. É também cultural, o que inclui desde a informação
            instantaneamente globalizada até o predomínio do inglês, o idioma
            da globalização. Mesmo no Brasil, muitas lojas já não fazem
            liquidações, mas "sale" ou "off", palavras que significam mais ou
            menos a mesma coisa, mas em inglês.
            Se a CNN (Cable News Network), a rede global de TV, deu o
            pontapé inicial à informação em escala planetária, é a Internet, a
            rede de computadores, que tece, dia após dia, vínculos crescentes
            entre os que estão nela plugados.
            Tece para o bem ou para o mal. São sistemas semelhantes à
            Internet que permitem a cada bolsa de valores saber no mesmo
            momento o que ocorre nas outras bolsas, por remotas que sejam.
            Permitem, por extensão, festejar ou chorar, conforme os gráficos
            de cotações apontem para cima ou para baixo.



            Mercado arrisca a sorte num jogo
            perdas fatais

            CELSO PINTO
            do Conselho Editorial

            O furacão financeiro que veio da Ásia, passou pela Europa,
            Estados Unidos e chegou ao Brasil, teve pelo menos uma
            vantagem didática. Ninguém pode mais alegar que nunca ouviu
            falar da globalização financeira.
            Até há poucos meses, é provável que poucos soubessem onde
            ficava a Tailândia ou Hong Kong. Hoje muita gente sabe que um
            resfriado nesses lugares pode virar uma gripe por aqui.
            Especialmente se fizer uma escala em Nova York.
            Existem várias dimensões da globalização financeira. A rigor, no
            mundo que existia entre 1870 e 1920 o fluxo mundial de capitais
            privados era muito maior, em termos relativos, do que é hoje.
            Medindo o tamanho da absorção pelos países dos capitais
            externos pelo tamanho de seu déficit externo em conta corrente, a
            média do período foi de 3,3% do PIB, enquanto a média nos
            anos 90 está em 2,6%.
            Se os fluxos privados de capitais eram mais expressivos em
            termos relativos, eles espantam, hoje, em termos absolutos.
            Apenas o fluxo líquido para os países emergentes, entre 90 e 96,
            somou US$ 1,2 trilhão. Vários fatores fazem com que o impacto
            dessa massa gigantesca de capitais que percorre o mundo hoje
            seja tão expressivo.
            Não há dúvida de que o mercado financeiro internacional tem um
            poder impressionante. Pela combinação de dois fatores: a
            desregulamentação dos anos 80 e o extraordinário avanço
            tecnológico nas comunicações.
            Até há pouco mais de uma década, muitos países mantinham
            estritos controles sobre o movimento de capitais. Só nesta
            década, por exemplo, França e Itália eliminaram as últimas
            restrições ao fluxo de dinheiro, por força do acordo da União
            Européia.
            Acabaram-se os controles sobre movimentação de capital, ao
            mesmo tempo em que mudou a face do mercado financeiro. A
            hegemonia dos bancos, como geradores de empréstimos, acabou.
            Decolou o mercado de títulos, emitidos por instituições financeiras
            e empresas.
            Títulos comprados por milhões de investidores ao redor do
            mundo, especialmente por meio de fundos de pensão e fundos de
            investimento, que tiveram um crescimento vertiginoso. Eles lidam,
            hoje, com uma espantosa massa de US$ 20 trilhões. Cada vez
            que esses investidores institucionais mudam de idéia sobre onde
            colocar 1% de sua carteira, US$ 200 bilhões mudam de lugar. O
            bastante para provocar terremotos.
            O avanço das comunicações e a liberdade de fluxos de capitais
            uniram os mercados. Hoje, muitas instituições financeiras operam
            24 horas por dia. Abrem o dia na Ásia, começam a operar na
            Europa quando os asiáticos vão jantar e abrem os negócios no
            mercado americano quando os europeus estão terminando os
            seus.
            Por essa razão, qualquer choque sobre o mercado tende a se
            propagar sem paradas. O que se viu nas últimas semanas foi um
            exemplo expressivo de um legítimo choque global. Um terremoto
            na Ásia abalando a Europa, a América Latina e os Estados
            Unidos, para voltar à Ásia no dia seguinte. Ou mudando de sinal a
            partir de uma recuperação americana, propagada para a Ásia, a
            Europa e a América Latina.
            O outro componente que torna o mercado financeiro internacional
            assustador é o tamanho do dinheiro mobilizável. Especialmente
            por meio dos "derivativos".
            Um derivativo, como diz o nome, é uma negociação derivada de
            alguma outra. Negocia-se no mercado futuro (de moedas, de
            juros, de índices etc.) uma operação financeira de compra ou
            venda que tem como referência a variação do preço de um ativo.
            A intenção, via de regra, é proteger-se no mercado futuro contra
            a variação no valor de numa operação real. O mercado é
            alimentado também, contudo, por especuladores que
            simplesmente apostam que certos preços irão em certa direção.
            Tomemos um exemplo no mercado de câmbio, mas que poderia
            ser aplicado a outras áreas, como juros. Suponha que uma
            empresa americana terá muita receita com exportações para a
            Alemanha, em marcos. O interesse da empresa é apresentar bons
            resultados em dólares, para seus acionistas americanos. Se o
            marco se valorizar em relação ao dólar, as receitas de
            exportações vão encolher quando medidas em dólares.
            Para se proteger, essa empresa pode comprar no mercado futuro
            um contrato em marcos no valor de sua receita futura. Se, até o
            vencimento, o marco se valorizar, o prejuízo com a receita de
            exportação será compensado com o lucro da operação financeira
            no mercado futuro, ou vice-versa.
            Agora suponha que existe uma empresa alemã na situação oposta,
            cujo receio é o de uma valorização do dólar em relação ao marco.
            Imagine que o valor do contrato é equivalente ao da empresa
            americana. As duas empresas poderiam fazer uma "troca", um
            "swap" no mercado futuro, de tal forma que uma pagaria à outra
            apenas a diferença referente à valorização ou desvalorização de
            uma moeda em relação à outra.
            Uma terceira forma de qualquer das duas empresas se proteger
            seria adquirir uma opção de compra no futuro da moeda em que
            vai receber sua exportação. Se a moeda se valorizar, a empresa
            exerce a opção e realiza o lucro financeiro que compensa a perda
            com a receita da exportação. Se a moeda não se valorizar, tudo o
            que a empresa perde é o prêmio que pagou para comprar a
            opção.
            Os três casos têm duas coisas em comum. Em todos eles, o
            desembolso e o custo é apenas uma fração do valor nominal da
            operação. Além disso, sempre tem alguém do outro lado
            apostando na direção oposta.
            Este alguém pode ser outra empresa, como no exemplo de "swap"
            acima, mas pode ser também um especulador, alguém que
            simplesmente aposta que uma moeda vai numa certa direção e
            quer ganhar dinheiro com isso. O especulador é essencial para dar
            liquidez ao mercado, mas ganhou, com os derivativos, um poder
            gigantesco de alavancagem em suas apostas.
            Quando soma-se a inquietação de empresas indo ao mercado
            futuro tentando se proteger contra a desvalorização de uma
            moeda, com o apetite dos especuladores em apostar contra essa
            moeda, chega-se a um ataque especulativo. Com uma fração do
            valor dos contratos, pode-se montar posições de bilhões contra
            uma certa moeda.
            A dimensão adquirida pelo mercado de derivativos é espantosa.
            Há dez anos o mercado era irrelevante. No ano passado, os
            derivativos somaram US$ 35 trilhões, segundos dados do Banco
            para Compensações Internacionais, o BIS. Desse total, US$ 9,9
            trilhões foram negociados nas várias bolsas de futuros ao redor do
            mundo, e US$ 24,3 trilhões, no mercado de balcão, ou seja, em
            operações feitas diretamente entre interessados no mercado.
            Os US$ 35 trilhões, ou quase seis vezes o valor do PIB
            americano, são o valor de referência das operações. O risco
            envolvido é menor, já que elas são acertadas por margens, como
            foi explicado.
            Alguns economistas saúdam a explosão dos derivativos como uma
            redução, não um aumento do risco. Como grande parte das
            operações vem do desejo de não correr riscos (de variação de
            uma moeda, das taxas de juros etc.), o salto nos derivativos
            apenas refletiria uma cautela saudável frente à internacionalização
            dos negócios.
            As autoridades, inclusive o BIS, estão muito mais preocupadas.
            Essas operações não são contabilizadas nos balanços dos bancos,
            nem sempre seus riscos são entendidos por quem opera e, se
            alguém quebrar no meio do caminho, pode gerar uma cadeia
            assustadora de perdas.
            Os derivativos são uma das faces da globalização financeira, mas
            o salto nas operações internacionais é geral.
            O estoque das operações internacionais dos bancos soma hoje
            US$ 8,2 trilhões brutos, ou US$ 6,9 trilhões líquidos, segundo o
            BIS. O estoque de papéis internacionais chega a US$ 3,2 trilhões
            líquidos e não pára de crescer: a emissão anual pulou de US$ 294
            bilhões em 91 para US$ 540 bilhões no ano passado.
            Esta montanha de papéis e milhões de investidores são capazes de
            reagir, em questão de segundos, a boas e más notícias. Os
            derivativos permitem alavancar apostas bilionárias, com um
            pequeno desembolso de dinheiro. Ou nem isso. Pode-se tomar
            emprestado o dinheiro necessário para pagar a margem da
            operação no mercado futuro.
            Foi isso que aconteceu com os países asiáticos, começando na
            Tailândia. No final, quem apostou contra os governos ganhou
            muito dinheiro, porque a desvalorização aconteceu, país após
            país. Especuladores como o húngaro-novaiorquino George Soros,
            contudo, só entram no jogo de apostar contra uma moeda quando
            acham que existem chances enormes de ganhar.
            Quando empresas e bancos tentam se cobrir no mercado futuro,
            por medo de uma desvalorização, e os especuladores sentem o
            cheiro de sangue, vão para o bote final. O que as pessoas
            esquecem é que alguém tem que estar na outra ponta, vendendo
            dólares em troca de moeda local, para que o especulador lucre.
            Esse alguém, a certa altura, acaba sendo apenas o banco central
            local.
            A globalização dos mercados financeiros torna esses movimentos
            rápidos, violentos e mortais. Uma inconsistência macroeconômica
            que, há duas décadas, poderia se arrastar por muitos anos e
            provocar uma lenta hemorragia, hoje pode levar um país à lona
            em questão de semanas. Mesmo que esse país seja o "darling"
            dos bancos internacionais, como era o México em 94, ou um
            "milagreiro asiático", como era a Tailândia.
            O risco da globalização financeira existe e a multiplicação do
            volume de papéis financeiros em relação à produção real pode
            acabar, como prevê o deputado Delfim Netto, "numa enorme
            fogueira". O próprio Soros, aliás, é um dos críticos desta explosão
            financeira.
            Existe, contudo, uma lógica no movimento de capitais. Um
            princípio continua válido: para países que mantêm políticas
            econômicas consistentes, a globalização financeira pode ser mais
            uma oportunidade do que um risco.



            Teóricos dividem-se entre céticos e
            eufóricos

            do Conselho Editorial

            O que é, afinal das contas, globalização? Como em qualquer
            assunto em que entre a questão econômica, essa pergunta vai
            encontrar 11 respostas diferentes, se forem consultados 10
            economistas.
            A explicação talvez mais didática está no teorema do economista
            Eduardo Gianetti da Fonseca:
            "O fenômeno da globalização resulta da conjunção de três forças
            poderosas:
            1) a terceira revolução tecnológica (tecnologias ligadas à busca,
            processamento, difusão e transmissão de informações; inteligência
            artificial; engenharia genética);
            2) a formação de áreas de livre comércio e blocos econômicos
            integrados (como o Mercosul, a União Européia e o Nafta);
            3) a crescente interligação e interdependência dos mercados
            físicos e financeiros, em escala planetária".
            Discorda o jornal francês "Le Monde", em recente dossiê sobre a
            "mundialização", como os franceses insistem em chamar a
            globalização.
            Lembra, primeiro, que "o comércio entre nações é velho como o
            mundo, os transportes intercontinentais rápidos existem há vários
            decênios, as empresas multinacionais prosperam já faz meio
            século, os movimentos de capitais não são uma invenção dos anos
            90, assim como a televisão, os satélites, a informática".
            O que "Le Monde" chama de "novidade" é "a desaparição do
            único grande sistema que concorria com o capitalismo liberal em
            escala planetária, ou seja, o comunismo soviético".
            Aí, sim, fecha-se o ciclo, porque o fim do comunismo permite
            globalizar de fato o capitalismo, com todas as implicações
            decorrentes: aumento no fluxo de comércio, de informações e de
            expansão das empresas multinacionais para mercados antes
            fechados.
            Tudo somado, tem-se que a "a mundialização é bem mais que
            uma fase suplementar no processo de internacionalização do
            capital industrial em curso desde faz mais de um século", como
            escreve, para este caderno, o especialista francês François
            Chesnais.
            Chesnais prefere ao que chama "termo vago" ("mundialização")
            definir esse fenômeno como "regime mundializado de dominação
            financeira".
            Tem certa razão: a globalização ainda é, acima de tudo, um
            fenômeno financeiro.
            A crise das bolsas é uma prova: a um simples toque de
            computador, bilhões de dólares se evaporam em Hong Kong e
            reaparecem em Nova York, por exemplo.
            Mas é preciso bem mais do que isso para tirar uma fábrica da
            Alemanha e instalá-la no Brasil, por exemplo.
            É por tudo isso que o especialista britânico Anthony McGrew
            (Universidade Aberta do Reino Unido) lista três tendências nos
            analistas da globalização, a saber:
            1) os "hiperglobalizantes", os que acham que a globalização define
            "uma nova época" na história da humanidade, em que "as
            tradicionais nações-Estado tornaram-se não-naturais, até mesmo
            unidades de negócio impossíveis em uma economia global". É o
            caso do japonês Kenichi Ohmae;
            2) os céticos. São os que entendem que os fluxos atuais de
            comércio, investimento e mão-de-obra não são superiores aos do
            século passado;
            3) os "transformalistas". Têm uma visão intermediária. Admitem
            que os processos contemporâneos de globalização não têm
            precedentes, mas acham que resta um papel para os governos
            nessa história, desde que se adaptem a um mundo em que já não
            há uma distinção clara entre assuntos domésticos e internacionais.
            Apontam, ainda, um novo padrão de inclusão e exclusão social na
            economia globalizada.

            Até os nômades
            No fundo, acaba sendo indiferente qual o rótulo que se prefira. As
            mudanças provocadas pela globalização não poupam nem sequer
            os personagens em tese mais independentes.
            Tome-se o caso dos beduínos da Arábia Saudita. São nômades,
            o que, por definição, quer dizer independentes, isolados do
            mundo. Fazem seu próprio estilo de vida, imutável há séculos.
            Era imutável.
            O custo de sustentar seus camelos, meio de transporte e de vida
            para todos eles, no trabalho de pastoreio, tornou-se insuportável.
            E já não conseguem enfrentar a concorrência oferecida pelas
            ovelhas importadas (à razão de 12 milhões ao ano) de lugares tão
            distantes como o Uruguai ou a Nova Zelândia.
            Se os nômades puderam produzir um símbolo, Lawrence da
            Arábia, como emblema do mundo pré-globalização, o mundo
            contemporâneo é, ao contrário, uma cacofonia de símbolos
            facilmente reconhecíveis, em qualquer lugar em que se esteja, da
            Coca-Cola à Toyota, da Nike ao McDonald's.



            Tecnologia reduz o tamanho do mundo

            MARIA ERCILIA
            do Universo Online

            O mundo nunca foi tão pequeno -e só encolheu tanto por causa
            da tecnologia. A indústria da telecomunicação vive uma explosão
            sem precedentes, somada ao barateamento e à popularização da
            informática. Paralelamente, começa a se esboçar uma
            convergência entre a infra-estrutura de comunicação e a indústria
            da mídia, à medida que ambas se digitalizam. É essa conjunção
            que torna possível um mundo globalizado nos moldes de hoje.
            "Já tivemos um mundo articulado em termos globais na segunda
            metade do século 19, com a hegemonia city londrina, que
            articulava as outras bolsas e as dominava. Esse período foi até o
            'crack' de 29", afirma Márcio Wohlers, professor do Instituto de
            Economia da Unicamp e especialista em economia das
            telecomunicações. "Nos anos 70, com a crise do petróleo,
            inicia-se o chamado "big bang" inglês, um processo de
            desregulamentação financeira que possibilitou uma nova
            emergência do capital financeiro internacional. Esse "big bang" foi
            causa e efeito de novas tecnologias de comunicação."
            Para Wohlers, o sistema financeiro hoje é, sob certos aspectos,
            muito mais resistente, devido à telemática. "A possibilidade de ter
            informação rápida reduz a incerteza", diz.
            Mas a aceleração da informação acaba gerando novos
            problemas. "Por outro lado, o que aconteceu nas bolsas no último
            dia 29 demonstra que a comunicação on line a partir de um certo
            momento pode acabar acelerando a propagação de crises
            regionalizadas. Já não se corre o risco de as informações
            chegarem tarde demais, mas por outro lado a possibilidade de
            contágio psicológico é muito maior. O fechamento de pregões foi
            quase uma constatação de irracionalidade. Não adianta um mundo
            de informação, porque o sistema de tomada de decisão está
            incapacitado. Não é verdade que mais informação significa mais
            racionalidade."
            Para Carlos Alberto Primo Braga, economista-chefe da divisão de
            telecomunicações e informática do Banco Mundial, a globalização
            depende do barateamento das telecomunicações e da redução da
            importância da localização geográfica.
            "Esse processo que chamamos de globalização, que se acelerou
            nos anos 80, não pode ser reduzido à comercialização cada vez
            maior de produtos no mercado internacional. Se tomarmos a
            exportação/importação de um país e dividirmos pelo PIB,
            veremos que esse parâmetro está aumentando. Mas isso também
            ocorria no século 19, com a economia colonial. Eu diria que as
            diferenças hoje estão na despencada nos custos de
            telecomunicação e na enorme facilitação do acesso à informação,
            em qualquer lugar onde se esteja."
            A "despencada" de que fala Primo Braga não é força de
            expressão. Entre a década de 40 e a de 70, o preço de uma
            chamada telefônica internacional caiu mais de 80%. Entre 70 e 90,
            mais de 90% (dados do Relatório de Desenvolvimento Humano
            da ONU, 1997). Como resultado, nos anos 80, o tráfego de
            telecomunicações aumentou 20% ao ano.
            A queda nos preços seria ainda maior se as empresas telefônicas
            tivessem repassado para o consumidor a redução de custos que
            vêm tendo.
            De acordo com dados do Banco Mundial, o custo de transmissão
            de voz caiu dez mil vezes nos últimos 20 anos, graças ao avanço
            das fibras óticas, da eletrônica e da comunicação sem fio.
            A telefonia móvel de alcance mundial, símbolo da integração
            global, que utilizará sistemas de satélite como o Iridium, deve estar
            funcionando em setembro de 98.
            Mas o mundo não ficou pequeno para todos. Apesar de uma
            complexa rede de cabos e satélites estar perto de abraçar
            completamente o globo, as telecomunicações ainda são um
            privilégio de poucos.
            Segundo as últimas estatísticas (União Internacional das
            Telecomunicações, 1996), existem cerca de 745 milhões de
            telefones para uma população mundial de 5,6 bilhões de pessoas.
            De acordo com dados da Organização Mundial do Comércio,
            grande parte da África tem menos de uma linha para cada 100
            habitantes. Os mercados mais saturados, com mais de 25 linhas
            para cada 100 habitantes, estão na América do Norte, Europa e
            Oceania.
            "É a chamada Lei de Jipp", afirma Wohlers. "A infra-estrutura de
            telecomunicações sempre acompanha o PIB per capita. Talvez
            dentro de um programa desenvolvimentista a telemática possa
            incentivar o crescimento econômico. Mas não substitui outras
            infra-estruturas."
            Apesar desse monstruoso abismo geopolítico, muitos analistas
            permanecem otimistas. Simon Forge, consultor da empresa
            norte-americana Cambridge Strategic Management Consultants, é
            autor de um estudo segundo o qual os preços de serviços de
            telecomunicação devem se aproximar de zero no ano de 2005.
            Segundo ele, três fatores vão derrubar ainda mais os custos de
            telecomunicação: avanços técnicos que reduzem o custo da
            infra-estrutura, o excesso de capacidade de transmissão
            internacional -que acaba transbordando para ligações de longa
            distância nacionais- e a desregulamentação e erosão das margens
            de lucro.
            A queda dos monopólios de comunicação e a revisão dos
            acordos tarifários internacionais devem reduzir rapidamente as
            altíssimas margens de lucro das empresas telefônicas.
            Uma plano divulgado pelo FCC (Federal Communications
            Commission dos EUA) no último dia 7 de agosto aponta na
            direção das previsões de Forge.
            O órgão quer reduzir drasticamente os valores pagos pelos EUA
            a operadoras de outros países para que ligações internacionais
            sejam completadas. As ligações internacionais terão uma redução
            dos atuais US$ 0,88 para US$ 0,20 por minuto. O órgão
            pretende fixar a tarifa máxima imposta às operadoras estrangeiras
            de acordo com o grau de desenvolvimento de cada país. Segundo
            o FCC, o usuário norte-americano, o mais competitivo do mundo,
            paga hoje mais de seis vezes o valor de uma ligação doméstica de
            longa distância para uma ligação internacional.
            Para Primo Braga, "esse é um processo sem retorno". A
            segmentação dos mercados de informação, comunicação e
            serviços "favorece a exploração de nichos. Por exemplo, o Brasil
            poderia passar a explorar o mercado de informação em português
            num nível mundial, através da Internet", afirma.
            Primo Braga acredita que o desenvolvimento de soluções
            alternativas, como a telefonia via Internet, vai reduzir ainda mais o
            preço da telecomunicação. As próprias empresas telefônicas,
            entre elas a Nokia (Finlândia) e a Deutsche Telekom (Alemanha),
            estão fazendo experiências com ligações telefônicas via Internet, a
            preços praticamente de ligação local.
            "Está ocorrendo hoje a morte da localização geográfica", afirma.
            "Houve um grande ganho de produtividade na indústria de
            serviços -responsável por 70% do PIB dos países industrializados
            hoje. As telecomunicações permitem que as empresas terceirizem
            funções e se concentrem na sua vantagem competitiva."
            O barateamento das comunicações empresariais é um elemento
            crucial da globalização na esfera produtiva.
            Segundo Márcio Wohlers, quando as empresas começaram a se
            comunicar por redes de computador interligadas por linha
            telefônica, tiveram um grande ganho de produtividade. "As
            grandes empresas adicionaram, com a comunicação ágil e barata,
            uma vantagem competitiva decisiva e ganharam mais poder."
            A convergência entre as indústrias de informática, telefonia e mídia
            transformam tanto o mercado de informação quanto o de
            comunicação. "Se colocarmos no alto de um triângulo a indústria
            cultural, à esquerda a indústria de informática e à direita
            telecomunicações, uma empresa hipotética no centro do triângulo
            representaria a convergência entre elas", diz Wohlers.
            "Mas cada setor tem uma lógica de competitividade diferente. A
            lógica da mídia é a do direito autoral. A do software é a da
            produção de massa. Finalmente, as telecomunicações têm o
            raciocínio do monopólio. Por isso muitas das grandes fusões
            fracassaram. Aquela idéia de que a empresa deve se manter no
            seu negócio principal até agora continua valendo."
            Embora as empresas não tenham chegado a achar um caminho
            para a convergência, a infra-estrutura se aproxima dela. Até
            pouco tempo havia uma distinção clara entre redes de telefonia,
            de dados e de "broadcast" (TV e rádio).
            A tendência é que telecomunicações, difusão de rádio e TV e
            transmissão de dados passem a circular indiferentemente por
            fibras óticas e satélites. Apesar das barreiras políticas e
            econômicas à integração das comunicações, do ponto de vista
            tecnológico os avanços nunca foram tão rápidos. Apontam para
            uma comunicação mais ubíqua, rápida e barata.



            Novo capitalismo intensifica velhas
            formas de exploração

            da Redação

            O economista francês François Chesnais, um dos principais
            teóricos da gênese e dos efeitos da globalização, é também um de
            seus maiores críticos. A convite da Folha, Chesnais respondeu
            para esta edição algumas das questões que permitem
            compreender como funciona a globalização e suas consequências.
            1. O que distingue a globalização das fases anteriores do
            capitalismo, como o imperialismo do século 19?
            A mundialização (1) é bem mais que uma fase suplementar do
            processo de internacionalização do capital industrial,
            desencadeada há mais de um século. Estamos diante de um novo
            modo de funcionamento sistêmico do capitalismo mundial ou, em
            outros termos, de uma nova modalidade de regime de
            acumulação. Por trás do termo vago de "mundialização"
            encontra-se um novo regime de acumulação, ao qual dou o nome
            de "regime mundializado sob égide financeira". Os traços
            característicos deste regime podem ser definidos por contraste
            com o modelo de acumulação "fordista", que prevaleceu durante
            os "30 anos gloriosos" (do final dos anos 40 ao fim dos anos 70),
            e com o modelo imperialista "clássico" que dominou até a crise de
            1929.
            O fordismo caracterizava-se pelas taxas de investimento
            suficientemente elevadas, capazes de manter empregada toda a
            mão-de-obra disponível ("assegurar o pleno emprego"), com
            ocasionais recursos até mesmo à imigração. Uma vez que se
            tratava de um regime de acumulação essencialmente voltado para
            a extensão da produção de valor e de mais-valia, e logo de
            riqueza (ao passo que o regime atual preocupa-se antes com a
            apropriação de riqueza e privilegia as atividades especulativas
            baseadas em posições nos mercados imobiliário, financeiro e de
            transações comerciais), ele foi capaz de tolerar, ao menos nos
            países capitalistas centrais, a partilha parcial dos ganhos de
            produtividade com as camadas assalariadas, bem como de
            suportar as despesas referentes ao Estado de bem-estar social, o
            "Welfare State".
            Nesses países, o regime fordista permitiu durante 30 anos uma
            elevação geral do nível de vida das grandes massas. À diferença
            ainda do regime de acumulação atual, o regime fordista tendia à
            inclusão e não à exclusão, do mesmo modo que, no plano
            internacional, tendia à integração e não à marginalização. Mesmo
            fora de seu âmbito geográfico original, os grandes grupos
            industriais dos países centrais acomodaram-se à implementação
            de políticas de substituição de importações, e assim geraram
            novas capacidades produtivas, por mais que tenham igualmente
            contribuído para a perpetuação da dependência tecnológica.
            Expandiram a massa de assalariados industriais e toleraram sem
            grandes dificuldades o "desenvolvimentismo" do tipo brasileiro.
            Dois fatores principais estiveram na origem da crise do regime
            fordista, ambos ligados ao sucesso da acumulação e às
            contradições resultantes. O primeiro foi a reaparição, em
            1974-75, da primeira crise "clássica" de superprodução e de
            superacumulação depois da Segunda Guerra Mundial. O segundo
            foi a reconstituição das bases econômicas e sociais de um capital
            financeiro poderoso, a quem pareceu mais e mais intolerável a
            força dos trabalhadores assalariados e de seus sindicatos, o nível
            de gastos com o "Welfare State" e a taxação sobre o capital e as
            altas rendas pessoais. Em 1979-80, a "revolução conservadora"
            levou ao poder os representantes políticos desse capital financeiro
            redivivo. A partir das políticas de liberalização e
            desregulamentação levadas a cabo pelos países do G7, pelo Gatt
            e pelo FMI, com o estímulo de Reagan, de Thatcher e do
            monetarismo triunfante, consolida-se o atual regime de
            acumulação.
            2. Que papel desempenha o capital financeiro nesse processo?
            O regime de acumulação mundializado sob égide financeira vive,
            muito mais do que em 1914 ou 1929, à sombra de um capital
            financeiro altamente concentrado. A mundialização financeira
            tornou a ser ao menos tão importante quanto a mundialização do
            capital produtivo. As carteiras de investimento são novamente tão
            ou mais importantes que o investimento direto. Nisso, o regime
            atual está mais próximo do imperialismo clássico. É claro que, em
            comparação com o começo do século, sua configuração
            modificou-se sob vários aspectos, mas alguns dos aspectos
            "novos" vão no sentido de um aprofundamento de traços
            "clássicos". As diferenças dizem respeito ao papel mais importante
            ora desempenhado pelos investimentos diretos no exterior e pelas
            operações dos grupos industriais transnacionais na organização
            dos fluxos comerciais; novo também é o grau crescente de
            interpenetração de capitais de origens nacionais diversas nos
            países centrais. Mas há semelhanças notáveis, que respondem
            pela reconstituição dos fluxos de rendas financeiras internacionais,
            que transitam por intermédio dos mercados financeiros ditos
            "emergentes".
            Neste novo regime, o capital financeiro cuja eutanásia era
            esperada por J. M. Keynes, reconstituiu-se em escala gigantesca.
            Ao lado das figuras tradicionais da oligarquia financeira, houve
            ainda a formação dos fundos de pensão e dos fundos de
            aplicação ("mutual funds") contemporâneos. Mas essa
            institucionalização e "democratização" do capital financeiro em
            nada altera suas características econômicas básicas. Trata-se de
            um capital financeiro "puro", que conserva a forma do
            "capital-moeda" (Marx) e que manifesta forte "preferência pela
            liquidez" (Keynes). Ele se dedica à valorização financeira pura do
            capital por meio da administração de carteiras de ativos
            financeiros (sobretudo de letras dos Tesouros nacionais e de
            ações). Este capital vive de retiradas sobre a riqueza criada na
            produção, transferidas por meio de circuitos que podem ser
            diretos (dividendos sobre o lucro de empresas) ou indiretos (juros
            de obrigações públicas e empréstimos aos Estados, que por sua
            vez representam retiradas sobre a renda primária circulando no
            sistema de impostos).
            Graças a essas retiradas, as relações de força entre o capital
            industrial e o capital financeiro "puro" modificaram-se claramente,
            com vantagem para o segundo. Essas relações são muito mais
            desiguais do que em 1914 ou 1929. Estamos portanto diante de
            um retorno ao imperialismo clássico, bem como de um reforço de
            seus traços fundamentais. O capital financeiro "puro" sempre teve
            fortes traços parasitários, e hoje também são muitas as suas
            ligações com o narco-capital e outras fontes "ilícitas".
            3. Quais são os efeitos positivos da globalização?
            As transformações do regime de acumulação não têm nada de
            irreal. O discurso sobre a "mundialização dos benefícios" é a
            cobertura ideológica que busca mascarar os fundamentos do
            regime de acumulação financeiro-rentista, bem como seu pobre
            desempenho em termos de desenvolvimento, revelado pelo último
            relatório do Unctad. Não há muito como negar o fato de que o
            novo regime de acumulação permite ao capital explorar a fundo e
            para seu exclusivo benefício as vantagens da liberalização. Nós
            não estamos diante de uma miragem.
            Os observadores sérios têm notado que a economia mundial
            voltou às taxas médias de crescimento semelhantes às dos tempos
            do imperialismo "clássico", antes do interregno dos "30 anos
            gloriosos". Por trás deste crescimento fraco encontra-se uma
            queda regular das taxas de investimentos, com muitos anos de
            investimentos nulos ou negativos. Isto é perfeitamente coerente
            com uma configuração do capital na qual há supremacia da fração
            que se valoriza por via financeira e com uma situação em que o
            capital financeiro se beneficia de transferências de enormes
            massas de riqueza. Essa baixa dos investimentos corresponde a
            dois grandes processos: a adaptação da oferta a uma demanda
            efetiva que sofreu um enfraquecimento contínuo de dois de seus
            componentes -o consumo dos assalariados e as despesas
            públicas- e dominação de estratégias empresariais em que as
            reestruturações (o "re-engineering") prevalece sobre a criação de
            novas capacidades.
            Num quadro de tensões comerciais crescentes entre as principais
            potências industriais, o capital tomado como um todo
            simplesmente administrou a situação por meio da concentração e
            de um novo impulso monopolista. As vagas sucessivas de
            fusões-aquisições serviram para adiar as consequências da
            superprodução transferindo para os grupos industriais mais fortes
            as parcelas de mercado dos grupos adquiridos, os quais são logo
            absorvidos e rapidamente reestruturados com reduções
            importantes de efetivos nos países de implantação das filiais. Os
            processos de fusão-aquisição revelam estratégias voltadas, não
            para a criação de novas capacidades produtivas, mas para sua
            reestruturação e, mais frequentemente ainda, para sua contração
            em termos de emprego. Este processo tem reduzido em níveis
            constantes o número total de grupos industriais em escala mundial,
            instituindo o oligopólio mundial como forma predominante de
            estrutura de oferta.
            A administração da superprodução crônica latente por meio da
            concentração industrial doméstica e transnacional não poderá
            prosseguir infinitamente. As estratégias de concorrência
            oligopolística são de natureza a agravar a situação de capacidade
            ociosa. É o caso da indústria automobilística, por exemplo, onde a
            rivalidade oligopolística recentemente tomou a forma de decisões
            de investimento maciço, para os quais não existirá mercado
            correspondente tão logo as novas capacidades produtivas entrem
            em operação.
            4. Quais são os limites da globalização?
            A modalidade atual de "desenvolvimento", compreendido como
            extensão e transplante do nível de industrialização e do nível de
            vida dos países avançados não representa mais uma perspectiva
            viável para o conjunto dos países e continentes do mundo. Por um
            lado, já não é desejado por aqueles que outrora foram seus
            agentes externos (os grandes grupos industriais); por outro,
            conhecemos seus limites ecológicos incontornáveis, uma vez que
            os países avançados não querem renunciar a seus privilégios.
            5. Quais os riscos de os Estados perderem autonomia e se
            tornarem apenas cumpridores das decisões de órgãos como a
            OMC (Organização Mundial do Comércio)?
            Não há quase nada a se esperar das organizações internacionais,
            e menos ainda da Organização Mundial do Comércio. Nas fases
            finais da Rodada Uruguai, os EUA e os lobbies industriais dos
            quais os norte-americanos são porta-vozes fizeram triunfar uma
            "agenda além das fronteiras". Sem que os Parlamentos e, em
            certos casos, sem que os próprios governos tivessem consciência
            no momento da assinatura e ratificação do Tratado de Marrakech,
            teve lugar um crucial abandono de soberania dos países em favor
            da OMC e, por extensão, aos interesses capitalistas mais
            poderosos.
            Com efeito, qualquer exportador pode agora questionar supostos
            "entraves à liberdade de comércio", isto é, medidas tomadas pelos
            Estados no campo da saúde, do controle de qualidade de
            alimentos, da preservação ambiental etc. Para tanto, basta entrar
            com um recurso diante do novo órgão de regulamentação, cujos
            "juízes" são árbitros comerciais privados adeptos da noção de que
            a "liberdade de comércio" deve prevalecer sobre qualquer outro
            princípio, e cujas decisões finais não podem ser desobedecidas
            senão com o aval unânime de todos os países membros!
            O objetivo do Acordo Multilateral sobre o Investimento, em fase
            de elaboração, é o de estender os mesmos princípios ao
            investimento estrangeiro, garantidos pelo mesmo sistema de
            regulamentação, o que acabaria por tornar caducas todas as
            disposições jurídicas e mesmo constitucionais de controle do
            investimento, assim como toda e qualquer medida de política
            industrial voltada seja lá de que maneira para o estímulo à indústria
            nacional. Os grandes grupos industriais querem total liberdade de
            ação, sem qualquer entrave. Se o Acordo Multilateral vier à luz, a
            abdicação de soberania em favor dos grandes interesses
            capitalistas serão quase totais. Em nome da panacéia do mercado,
            dar-se-á um golpe de Estado legal e em escala mundial, para
            maior benefício dos mais ricos e poderosos.
            6. Quem ganha e quem perde com a globalização?
            Como disse Robert Reich (ex-secretário do Trabalho do governo
            Clinton) em seu livro de 1991, a mundialização é uma modalidade
            de funcionamento do capitalismo na qual "os ricos ficam mais ricos
            e os pobres ficam mais pobres". Mecanismos de integração
            seletiva triam aqueles países mais atrativos do ponto de vista da
            valorização do capital e aqueles que não o são. Mas os países não
            são entidades homogêneas. Todos eles estão divididos em classes
            sociais de interesses econômicos diferentes e com frequência
            antagônicos. Reich identificou bem quais categorias profissionais e
            quais camadas sociais saem perdendo ou ganhando no país que
            domina o movimento de mundialização financeira. As instituições
            criadas após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial haviam
            estabelecido limites ao poder do capital, e assim representavam
            um ponto de apoio para os assalariados diante de seus
            empregadores. A liberalização trazida pela "revolução
            conservadora" conseguiu enfraquecer fortemente essas
            instituições, quando não as destruiu.
            Nos países em que a grande propriedade agrária, ao lado de
            relações de trabalho típicas das formas de exploração
            pré-industriais, não foi erradicada e, pelo contrário, deu origem a
            oligarquias agro-financeiras consolidadas em torno a sistemas
            bancário-usurários fortemente hipertrofiados, o "espírito
            empreendedor" teve as maiores dificuldades em se difundir. O
            Estado "desenvolvimentista" foi uma tentativa de suprir essa
            ausência e estimular a formação de uma classe capitalista
            moderna. No quadro de uma mundialização na qual a liberalização
            permite que os grandes grupos industriais estrangeiros
            competitivos produzam e vendam sem entraves, na qual as
            inversões financeiras têm rendimento superior aos investimentos
            produtivos, o reflexo patrimonial triunfa outra vez. A
            desnacionalização da indústria (ou a desindustrialização pura e
            simples) encontra apologistas nos mais altos escalões do Estado.
            A uma dominação cujos elos estavam nas academias militares
            estrangeiras sucede um regime mais "civilizado", de integração
            subordinada ao regime mundial. Suas engrenagens são as grandes
            universidades, os bancos estrangeiros e os grandes organismos
            econômicos e financeiros mundiais em Washington ou Genebra.
            Uma página da história social das nações foi virada.

            Nota:
            1. Os franceses utilizam o termo "mundialização" em referência ao processo
            de globalização. Foi mantida, na tradução, essa particularidade.

            Tradução de Samuel Titan Jr.



            Blocos evidenciam o conflito entre
            globalizar e regionalizar

            do Conselho Editorial

            A globalização produziu, pelo menos em matéria de comércio
            internacional, um dilema que lembra a propaganda dos biscoitos
            Tostiness, aqueles que ninguém sabe se vendem mais porque são
            fresquinhos ou se são fresquinhos porque vendem mais.
            Idêntica questão cerca os acordos comerciais regionais, como o
            Mercosul: grandes especialistas em comércio internacional e até as
            entidades que o supervisionam não têm certeza se os blocos são
            apenas etapas necessárias e positivas na direção de um mundo
            sem barreiras ou se minifortalezas que, no limite, impedirão a
            queda de todas as fronteiras.
            Esse dilema ocupa lugar de destaque na agenda do italiano Renato
            Ruggiero, diretor-geral da OMC (Organização Mundial do
            Comércio), entidade que funciona como uma espécie de
            superxerife do comércio planetário.
            Ruggiero repete sempre que um dos grandes desafios para a
            OMC é "assegurar que os obstáculos nacionais (ao comércio) não
            sejam simplesmente substituídos por obstáculos regionais".
            Traduzindo: impedir que países como o Brasil, antes fechados,
            derrubem barreiras que constavam de suas regras internas apenas
            para reerguê-las mais adiante via mercado regional.
            Ruggiero acha que blocos regionais podem, sim, funcionar como
            etapas para um mundo sem fronteiras, desde que pratiquem o que
            o jargão designa como "regionalismo aberto". Ou seja, desde que
            cada bloco não se feche em si mesmo, mas vá estendendo aos
            demais países, paulatinamente, as facilidades que concede aos
            países-membros.
            Se se fizer o contrário, "chegaríamos em não mais de 20 ou 25
            anos a uma divisão do comércio mundial em duas ou três zonas
            preferenciais intercontinentais, cada uma com suas próprias
            normas e um regime de livre comércio dentro da zona, mas
            continuariam existindo obstáculos externos entre os blocos", diz
            Ruggiero.
            A definição mais pragmática de um bloco comercial regional
            pertence a Jeffrey Lang, subchefe do USTr, o organismo que
            cuida do comércio internacional norte-americano: "Toda vez que
            se conclui um acordo comercial que reduz as barreiras entre as
            partes, e tais partes não incluem os EUA, os produtores
            norte-americanos ficam em desvantagem".
            Mudando o nome do país, esse raciocínio pode ser aplicado por
            qualquer autoridade de qualquer nação excluída de acordos
            regionais. Quando o Brasil, em função do Mercosul, reduz as
            barreiras para produtos argentinos, está criando desvantagens
            para os produtores de todos os seus demais parceiros.
            Os números do Mercosul, entre 1990 e 1995, anos que podem
            ser tomados como marcos de sua consolidação, provam a tese: as
            importações que os quatro países que o integram fizeram de seus
            parceiros no bloco cresceram, no período, 218%.
            Já as importações provenientes dos dois outros grandes parceiros
            do Mercosul aumentaram bem menos: as provenientes da União
            Européia subiram 172%, e, as do Nafta (EUA, Canadá, México),
            apenas 150%.
            É o que, no jargão do comércio global, se chama de "desvio de
            comércio". Ou seja, ao dar facilidades para que, por exemplo, o
            leite argentino La Serenisima entre no Brasil, "desviam-se"
            importações de leite suíço, digamos. Ou, na ponta das
            exportações, ao terem facilidades para vender na Argentina, os
            produtores brasileiros podem se sentir menos pressionados a
            modernizar-se para poder vender também para o Japão, por
            exemplo.
            Esse conflito entre globalização e regionalismo é tão latente que
            ganhou a capa da revista britânica "The Economist", no fim de
            1996, que analisou os supostos riscos que o regionalismo
            representa para o comércio global: "Ao liberalizar o comércio só
            com seus vizinhos, os países estão, por definição, discriminando
            os que não têm a sorte de estar no clube local".
            A questão é saber se os "clubes locais" caminham para integrar-se
            a outros clubes, de forma que, num futuro não remoto, haja um
            grande bloco, do tamanho do planeta, ou se tendem a fechar-se
            em três ou quatro grandes conglomerados em guerra comercial
            uns com os outros.
            A preocupação de Ruggiero, da OMC, não é exatamente com o
            Mercosul ou o Nafta ou nem sequer com a União Européia, o
            conglomerado de 15 países que está mais avançado do que
            qualquer outro no processo de integração regional.
            É com o projetado casamento entre o que ele chama de
            "iniciativas regionais verdadeiramente gigantescas".
            É uma designação apropriada para três grandes hipóteses de
            superblocos, a saber:
            1) o acordo-quadro entre a União Européia e o Mercosul, que
            prevê a criação de uma zona de livre comércio entre os 19 países
            dos dois blocos a partir de 2005;
            2) a intenção de 34 países americanos, excluída só Cuba, de fazer
            a mesma coisa no mesmo prazo nas Américas, a Alca (Área de
            Livre Comércio das Américas);
            3) o projeto da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) de
            criar uma zona de livre comércio em duas etapas, a primeira em
            2010, e, a segunda, em 2020.
            Qualquer dos três projetos que se concretize criará a maior zona
            de livre comércio do planeta.
            Nada impede, em tese, que cada uma dessas grandes zonas de
            liberdade comercial conflua com as outras e se tenha uma
            liberalização de escala planetária.
            Mas, diz com razão Ruggiero, "o sistema multilateral carece de um
            plano detalhado comparável para a eliminação de todos os
            obstáculos ao comércio".
            Na falta de um projeto global, o risco é o de que cada superbloco
            se feche para os demais, o que, além do risco de uma guerra
            comercial, marginalizaria países gigantescos, como China e Rússia,
            que, até agora, não entram em esquema algum.
            É sintomático que a União Européia e os EUA estejam
            empenhados em uma surda guerra para ver qual dos dois
            consegue fechar antes o acordo com o bloco sul-americano. No
            Brasil também há uma surda guerra de argumentos entre os
            pró-Alca e os pró-União Européia.

            Números pouco provam
            As tendências mais ou menos recentes no comércio internacional
            não deixam perfeitamente claro se há um predomínio do regional
            sobre o global.
            Numa ponta, há uma nítida tendência para a liberalização, refletida
            nos números da própria OMC: quando, em 1948, foi criado o
            Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), antecessor da OMC,
            23 países estavam presentes. Na primeira conferência da OMC,
            no ano passado, em Cingapura, já eram 128 os países
            representados, mais 28 na lista de espera.
            Mas, simultaneamente à adesão ao organismo multilateral por
            excelência, explodem os acordos regionais: já são 76 registrados
            na OMC -entre 1985 e 1990, eram cinco os registrados no Gatt.
            Daí até 1995, nasceram 33 novos acordos.
            Nos quase 50 anos desde o lançamento do Gatt, o comércio
            mundial cresceu exponencialmente, passando de US$ 50 bilhões
            para US$ 6,1 trilhões. Parece um sinal claro de que o mundo
            caminha para passar uma motoniveladora nas barreiras
            comerciais. Mas quase dois terços (exatamente 61%) dessa pilha
            de dinheiro é comercializada dentro de blocos regionais.
            Números que deixam claro que não está dita a última palavra na
            guerra entre os "clubes locais" e a "aldeia global".
            (CLÓVIS ROSSI)



            'Rodada Uruguai' ditou agenda do
            processo

            do Conselho Editorial

            O bom senso manda incluir uma expressão pouco charmosa
            ("Rodada Uruguai") como um marco no processo de globalização.

            A "Rodada Uruguai" começou em 1986 em Montevidéu (daí o
            nome), arrastou-se por quase oito anos e terminou com o mais
            abrangente pacote de redução das barreiras ao comércio
            planetário. Seu impacto mais visível e até certo ponto quantificável
            surge da redução das tarifas alfandegárias para importações.
            O cálculo usual sobre o efeito da liberalização na economia
            mundial é o de um estudo da secretaria do Gatt (Acordo Geral
            sobre Tarifas e Comércio, o organismo até então a cargo de
            negociações comerciais). Diz que "os acordos da 'Rodada
            Uruguai' darão lugar a um aumento anual da renda mundial
            estimado em US$ 510 bilhões, no momento em que, no ano de
            2005, seus compromissos estejam plenamente aplicados".
            Para comparação: US$ 510 bilhões eram, à época, tudo o que a
            economia brasileira produzia por ano em riquezas, o seu PIB
            (Produto Interno Bruto).
            Mas a "Rodada Uruguai" foi além da negociação sobre derrubada
            de barreiras para exportar mercadorias. Introduziu na agenda
            mundial as chamadas áreas novas do comércio, em especial o
            vastíssimo campo de serviços. É uma rubrica que cobre desde
            telecomunicações a transporte marítimo, passa por serviços
            financeiros e atinge até compras governamentais, rótulo oficial
            para as licitações que todo governo faz para comprar lápis ou
            pontes.
            A "Rodada Uruguai" não fechou acordo algum na área de
            serviços, mas estabeleceu uma agenda de negociações que vai até
            o ano 2000. Já foi assinado, este ano, acordo para abrir o
            mercado de telecomunicações, se não o maior, pelo menos o mais
            rico bastião das empresas estatais.
            Também já foi assinado acordo que prevê derrubar, até 2000,
            todas as barreiras para a importação de equipamentos/serviços de
            tecnologia de informação (ou informática).
            O impacto da liberalização no setor de serviços tende a superar,
            com muita folga, o da derrubada das barreiras para mercadorias.
            Trata-se, afinal, do setor mais dinâmico da economia mundial e,
            acima de tudo, do único que ainda gera empregos, ante a
            estagnação (às vezes declínio) da indústria e a mecanização da
            agricultura, que se torna crescentemente irrelevante do ponto
            nesse ponto de vista.
            Para comparação: as exportações de serviços comerciais, no ano
            passado, foram de US$ 1,17 trilhão, mais do que o dobro do que
            o mundo exportou em mercadorias (US$ 525,4 bilhões).
            O que a "Rodada Uruguai" não alterou é o fato, clássico, de quem
            dita a agenda são os países ricos.
            É sintomático que, enquanto se fecham acordos sobre temas ditos
            novos (telecomunicações, informática etc), permanecem
            emperradas as negociações sobre o mais antigo bem
            transacionado internacionalmente, os produtos agrícolas.
            A "Rodada Uruguai" introduziu, é verdade, modestas aberturas
            nessa área, mas jogou as negociações definitivas para o ano 2000.
            Motivo óbvio: tanto EUA como a União Européia subsidiam
            generosamente seus produtores agrícolas e recusam-se a abrir
            seus mercados para a competição com produtos do mundo
            subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
            Por trás dos países ricos, há um número relativamente pequeno de
            empresas transnacionais que determinam a agenda. Não se trata
            de teoria conspiratória da esquerda, mas de fatos e números. O
            comércio entre filiais e matrizes de multinacionais representa
            aproximadamente 1/3 do comércio mundial, e as exportações das
            multis a companhias que não são subsidiárias delas cobrem outro
            terço.
            Essa concentração de poder econômico "pode limitar a
            concorrência, reduzindo, assim, os ganhos para os consumidores
            e as economias nacionais" (decorrentes da globalização), diz
            relatório da Consumers International, grupo global de defesa dos
            consumidores. O relatório escancara, no fundo, a grande carência,
            seja da "Rodada Uruguai", seja da OMC: não abriram lugar à
            mesa de negociações para os consumidores, que tanto podem ser
            as vítimas como os beneficiários da globalização. (CLÓVIS ROSSI)



            Especulação abala hierarquia do
            poder no mundo global

            JOSIAS DE SOUZA
            Secretário de Redação

            A tela da CNN exibia duas cenas. Em quadro maior, no canto
            superior, o presidente Bill Clinton recepcionava seu colega chinês
            Jiang Zemin, que visitava os EUA. No canto inferior, Alan
            Greenspan, presidente do Federal Reserve, falava sobre o crash
            mundial das bolsas.
            Súbito, as câmeras concentraram-se em Greenspan. Por instantes,
            Clinton e Zemin sumiram do vídeo. A especulação financeira havia
            subvertido a hierarquia. O mundo não queria senão ouvir
            Greenspan. Dependendo do que dissesse, as bolsas poderiam
            subir ou continuar em queda livre.
            A semana passada deixou, em seu rastro, uma indagação: quem
            pode mais, o Estado ou o sistema financeiro internacional, esse
            fantasma do capitalismo globalizado?
            O triunfo de 1989, ano em que o Muro de Berlim ruiu, parecia tão
            definitivo que chegou-se a preconizar o fim da História. Os três
            volumes de "O Capital" foram como que empurrados para o
            fundo da estante. Obras como "Caminho da Servidão", do
            economista austríaco Friedrich August von Hayek, espécie de
            guru do neoliberalismo, ganharam viço.
            Em 1995, porém, quando tudo se encaminhava para a
            consolidação da onda liberal, o capitalismo começou a investir
            contra si próprio: vieram a crise do México e a quebra do Banco
            Barings, da Inglaterra. Agora, o crash das bolsas.
            A Brasília da última sexta-feira, gabinetes em brasa, tonificava a
            sensação de que países como o Brasil, ditos "emergentes", não
            estão mesmo à salvo dos chamados ataques especulativos.
            Sob os efeitos da globalização, um vírus inoculado na Bolsa de
            Hong Kong espraia-se pelo mundo. Na quinta-feira, 24 horas
            depois da fala de Greenspan, Sônia Regina de Oliveira, 44, viu-se
            obrigada a adiar a compra a prazo de uma TV.
            Na véspera, Brasília dobrara as taxas de juros -recurso extremo
            para tentar seduzir os capitais especulativos que batiam em
            retirada. Um dos efeitos colaterais foi a alta dos crediários. Assim,
            a crise iniciada em Hong Kong invadiu o cotidiano de uma dona
            de casa no Rio de Janeiro.
            Diz-se, em benefício do capitalismo, que alguns países, o Brasil
            entre eles, estão sob risco justamente porque não seguem à risca
            o receituário liberal. Encontram-se às voltas com sobrevalorização
            da moeda, déficits em suas balanças de pagamento e despesas
            públicas maiores do que as receitas.
            No Brasil, o Estado liberal é confundido com Estado fraco. O
            acervo intelectual do liberalismo ensina algo bem diferente.
            Em "Investigação sobre as Causas da Riqueza das Nações", por
            exemplo, Adam Smith dizia, já em 1776, que a economia de
            mercado deve respeitar o interesse individual, assegurado pelo
            estado de direito. Os movimentos da última semana evidenciaram
            que o interesse que move a gangorra das bolsas não é o do
            cidadão, mas o da especulação.



            FHC vê novo limite à ação dos Estados
            nacionais

            do Conselho Editorial

            O presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
            reconhece que a globalização "limita efetivamente o âmbito de
            ação dos Estados nacionais".
            Primeiro como ministro da Fazenda e agora como presidente, o
            sociólogo está na posição ideal para avaliar até que ponto a teia
            de relações e acordos internacionais reduz as possibilidades de
            cada governo impor as regras.
            Ele vai ao extremo para mostrar como a integração econômica
            esvazia o poder dos Estados nacionais: "Os países europeus estão
            discutindo uma moeda única. Moeda única significa obviamente
            que os Bancos Centrais não vão ter mais capacidade de definir a
            taxa de câmbio. É um instrumento de defesa de certos setores da
            economia que os Estados nacionais perdem".
            A perda não é apenas dos Estados, mas também dos atores que,
            historicamente, exerceram maior influência sobre as políticas
            públicas. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São
            Paulo) sempre foi tida como um poderoso lobby a influenciar
            determinadas políticas. Agora, já não é tanto assim, defende o
            editorial de agosto da revista da consultoria Trevisan.
            "Reformas e mudanças estão ocorrendo no país e vão continuar
            cada vez mais porque os capitais estrangeiros e os acordos com
            blocos econômicos passaram a ditar as regras e estabelecer as
            condições para investimentos e trocas no comércio internacional",
            diz o texto.
            Há até quem ache que Genebra é tão importante quanto Brasília
            para definir as políticas que o governo brasileiro pode ou não
            adotar. Exemplo: a primeira política para o setor automobilístico
            ensaiada pelo governo FHC foi derrubada não pelo Congresso,
            mas pela OMC, sediada em Genebra. Motivo: criava um sistema
            de cotas que contraria as regras da OMC.
            Até a única superpotência remanescente, os Estados Unidos,
            tiveram sua margem de manobra limitada pela OMC, embora, é
            óbvio, continuem predominantes.
            Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o presidente.
            (CR)

            Folha - Um dos conceitos mais difundidos sobre
            globalização diz que ela provoca uma perda de capacidade
            de os Estados nacionais executarem políticas fortes. Alguns
            até acham que tendem a desaparecer de alguma maneira. O
            sr. concorda com esse conceito?
            Fernando Henrique Cardoso - Ela limita efetivamente o âmbito
            de ação dos Estados nacionais. De todos. Isso é que é o mais
            curioso, porque no passado essas limitações incidiam sobre os
            países subdesenvolvidos, dependentes. Agora, não, é mais amplo.
            Por quê? Nenhum Banco Central, nem o Banco de
            Compensações Internacionais (o banco central dos bancos
            centrais), consegue controlar essa massa de recursos. É realmente
            um processo que limita a capacidade das instituições existentes,
            tanto as nacionais quanto as internacionais, de lidarem com o
            fenômeno. Agora, essa limitação é dinâmica.
            É claro que os Estados nacionais e as entidades internacionais
            reagem à nova situação e procuram então colocar em novo
            patamar os seus limites, avançar no sistema de controle de
            decisões. Mas que limita, limita. Ainda mais especificamente no
            caso da Europa. Os países europeus estão discutindo moeda
            única. Moeda única significa obviamente que os bancos centrais
            não vão ter mais capacidade de definir a taxa de câmbio. É um
            instrumento de defesa de certos setores da economia que os
            Estados nacionais perdem. Por outro lado, estão se constituindo
            outros instrumentos.
            Eu conversei com o Prodi (Romano Prodi, primeiro-ministro
            italiano). A Itália vai ter que se ajustar. Bom, isso é uma limitação,
            mas, se não fizer isso, ela também perde em termos de
            competitividade com os outros países europeus. É uma limitação,
            então, que pode resultar num acordo positivo, e eles não vêem a
            questão com os olhos da preocupação do Estado nacional, vêem
            com os olhos da população. Vai melhorar a situação e a Itália vai
            ter mais chances.
            E não acredito que vá desaparecer o lado nacional. Na Europa,
            tem outra tendência: a volta do regionalismo, na Espanha, Itália...
            Na Alemanha, não creio. Então haverá uma coisa curiosa que não
            era pensada: as diferenças culturais aparecem com mais força
            também. Então, não acho que essa globalização seja o fim da
            história, o fim do Estado. Essas são visões um pouco simplistas do
            processo, precipitadas. A política renasce de outra maneira.
            Folha - Uma outra crítica, menos consensual do que a
            anterior, é de que o Brasil não está se integrando, o mundo
            é que está engolindo o Brasil.
            FHC - É uma velha discussão.
            Folha - E tem a frase do Otto Lara Resende de que o Brasil
            vai chegar ao Primeiro Mundo para fazer a faxina.
            FHC - Eu prefiro uma frase do (Giorgio) Napolitano (atual
            ministro do Interior da Itália). Ele disse o seguinte em uma
            entrevista: o problema não é saber se existe ou não
            internacionalização, o problema é saber se eles vão nos
            internacionalizar ou nós nos internacionalizaremos. Essa frase já
            tem uns 10 ou 15 anos, repeti muitas vezes, porque eu a achei
            boa.
            No governo Geisel, que foi talvez um governo que teve uma
            política, mas ainda embasada na idéia de autarquia, nós todos
            criticamos a chamada plataforma de exportação, que eram os
            países do sudeste da Ásia. Nós dizíamos que aquilo era o fim.
            Não se percebia que era um sinal de que o comércio internacional
            ia ter uma dinâmica muito forte. Nós no Brasil continuamos
            apostando no mercado interno. E é claro que, num país
            continental como o Brasil ou os Estados Unidos, sempre o
            mercado interno vai ser muito mais importante do que o mercado
            externo do ponto de vista de volume.
            Mas nós não percebemos naquela época que estava havendo uma
            mudança e que nós tínhamos que escolher áreas, nichos, onde
            pudéssemos participar mais ativamente do mercado internacional.
            Ainda hoje, quando você olha a pauta de exportação do Brasil, vê
            que ela é pouco dinâmica. Então, o comércio internacional cresce
            com uma velocidade grande e a nossa participação nele não. Isso
            não é só uma questão de política de governo. Como temos um
            mercado interno grande, o nosso empresariado se acomoda e tem
            lucros mais facilmente no mercado interno.
            Então, você tem que fazer um grande esforço para que haja uma
            abertura de nichos no mercado internacional.
            Folha - Mas quais seriam os nichos que o sr. vê mais
            adequados para o Brasil?
            FHC - Nós temos que preparar a nossa produção não só para
            exportar. É para concorrer aqui dentro com os importados. São
            as duas coisas ao mesmo tempo. Concorrer, ou seja, melhorar a
            qualidade da produção. Já estão importando equipamento etc.,
            muito bem. Agora, um país, para poder ter viabilidade de longo
            prazo, ele tem que produzir coisa que agregue valor. Você olha
            nossa pauta de exportação, ela é composta basicamente ainda de
            produtos primários.
            Eu não quero dizer com isso que nós devamos não olhar para
            esses produtos. Até pelo contrário. Eu acho que o Brasil ficou no
            pior dos dois grupos, porque industrializou para dentro e
            descuidou um pouco da produção agrícola. Os Estados Unidos
            têm uma produção e uma exportação agrícola enormes. Nós
            temos que ter também aqui. A questão, realmente, é onde você
            agrega valor.
            A gente pode ganhar tempo com essa produção primária para que
            você possa avançar mais onde agrega valor. Aí você tem várias
            áreas, como, por exemplo, a indústria do espaço. O Brasil tem
            uma posição estratégica fantástica que é a base aérea de
            Alcântara, a base de lançamento de satélites. Tem propostas
            bastante importantes chegando aqui de utilização da base e da
            formação e ampliação de uma produção local da indústria de
            espaço.
            Folha - 2005 acabou virando uma data cabalística, porque é a
            data fixada tanto para a conclusão da Alca como para a zona de
            livre comércio entre Mercosul e Europa. Se o sr. pudesse fazer
            uma avaliação, mais como sociólogo do que como presidente, o
            que imagina em 2005? A Alca estaria pronta ou antes se abriria a
            zona de livre comércio com a União Européia ou em vez delas a
            Alcsa, a área de livre comércio da América do Sul?
            FHC - Eu acho que a Alcsa, certamente. Eu vejo com mais
            facilidade essa integração aqui. É mais difícil com a Europa. Nós
            vamos fazer força para que isso aconteça. Também na Europa há
            um componente político na relação Mercosul-União Européia.
            Eles estão se preparando para ser um apoio importante. Onde for
            possível avançar, deve-se avançar. Agora, onde não for possível,
            tem que haver compreensão, tem que dar tempo.
            Não há dúvida nenhuma que o Brasil vai ser duro nisso. E acho
            que a estabilidade política e até social do continente depende de
            uma relação não tensa entre Brasil e Estados Unidos. Nós
            devemos lutar por esses objetivos: uma relação não tensa e com
            conteúdo também extramercado na jogada. A internacionalizaçao
            trouxe o crime internacional e organizado. Lavagem de dinheiro,
            narcotráfico. É um problema que, se não houver um
            relacionamento correto entre o Brasil e os Estados Unidos,
            complica muito.
            Folha - Há uma discussão se se vai chegar a um mundo sem
            fronteiras. Há até quem proponha 2020 como o ano para
            que todas as fronteiras comerciais desapareçam. Em sua
            opinião, o que vai acabar prevalecendo, fortalezas regionais
            ou mundos sem fronteiras?
            FHC - Eu acho que nós vamos ter sub-blocos, mas não vão ser
            fechados. Não tem como fechar por causa dos centros
            produtivos. A revolução é o sistema produtivo. Ela tem a ver com
            a telemática, com a informática, a informação imediata e
            simultânea e com o fato de que você pode maximizar em nível
            planetário o seu sistema produtivo. Isso é um dado da realidade.
            Quer dizer, é um novo tipo de produção que não é só industrial,
            mas que tem como espinha dorsal os meios de comunicação
            instantânea e informática. Você pode controlar a produção da sua
            empresa a não sei quantos milhares de quilômetros de distância e
            ter informação on time. Isso não vai mudar. Então isso não tem
            como você fazer barreiras, porque elas caem. Mesmo barreiras
            cambiais caem. Manda moeda para cá e para lá.
            Nós temos que preparar a população para ter um amplo espectro
            de acomodação às novas funções. Para ter um espírito de
            mobilidade que nós não temos. Os americanos têm, os europeus
            têm menos que nós. Então, isso requer, e essas coisas estamos
            fazendo, botar computador na escola primária, ter um tipo de
            formação profissional de outra natureza, mudar os currículos, ter
            mais coragem para mudar o ensino universitário.



            Intercâmbio aproxima países e
            anuncia "cultura global"

            MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
            Editor de Domingo

            Abrimos livros, jornais e revistas, ligamos a TV, vamos ao cinema,
            teclamos o computador ou entramos no avião: tudo nos diz que o
            mundo está mudando, está menor e mais semelhante. Todos
            consumimos os mesmos produtos, vemos as mesmas imagens,
            repetimos os mesmos comentários sobre os mesmos fatos e suas
            versões. Somos convocados a testemunhar o alvorecer de uma
            nova época, a emergência da era da "cultura global", expressão
            que, de imediato, nos sugere imagens das mais prosaicas às mais
            mirabolantes.
            Uma delas, bastante difundida, poderia ser descrita,
            simplificadamente, como a visão de um mundo crescentemente
            limpo, informatizado, no qual os povos e os indivíduos
            beneficiam-se das maravilhas da técnica e cultivam a semente da
            consciência planetária que triunfará na aldeia global do terceiro
            milênio.
            Aqui, os vertiginosos desenvolvimentos no campo da informática e
            das comunicações soam como trombetas de uma revolução. O
            futuro, liderado pela tecnologia, reservaria à humanidade
            possibilidades jamais imaginadas, capazes de transformar
            profundamente o modo de vida sobre a face da Terra.
            Um dos indícios mais eloquentes a prenunciar tal transformação
            seria a Internet, da qual deriva a imagem de um mundo organizado
            segundo a estrutura de uma rede. No dizer de Nicholas
            Negroponte, autor do eufórico "A Vida Digital", a comunidade de
            usuários da Internet "vai ocupar o centro da vida cotidiana" e a
            demografia da rede "vai ficar cada vez mais parecida com a do
            próprio mundo".
            Para o autor, a chamada supervia da informação já é bem mais do
            que um atalho para consultas à biblioteca do Congresso
            norte-americano: "Ela está criando um tecido social inteiramente
            novo e global".
            Menos entusiasmada, mais politizada (e também mais
            decepcionada), uma outra imagem contrapõe-se à do mundo-rede
            informatizado. Aqui, a noção de cultura global é vista como
            resultado da extensão de uma determinada cultura aos limites do
            globo. Um mesmo sistema de crenças, hábitos, comportamentos e
            representações expande-se sobre a Terra, suplanta as fronteiras
            nacionais, subjuga a heterogeneidade e impõe-se como totalidade
            uniformizada.
            A globalização cultural é tomada como peça ideológica de uma
            estratégia de domesticação em escala planetária, que resultaria na
            configuração de um mundo integrado e organizado nos moldes de
            um gigantesco Estado-nação.
            Para que esse processo exista é necessário imaginar um centro
            irradiador, cuja hegemonia econômica, tecnológica e cultural
            poderia ser coroada com a conquista final do planeta. Seu nome é
            conhecido: imperialismo capitalista.
            O imperialismo, liderado no século 19 pela Inglaterra, é
            representado no século 20 pelos Estados Unidos da América,
            cuja máquina ideológica, aliada a interesses econômicos e
            militares, marcharia sobre a Terra, destruindo as manifestações
            culturais 'àutênticas", para impor seu domínio. Nas palavras do
            ex-terrorista italiano Antonio Negri: "A constituição do Império
            está se desenvolvendo sob nossos olhos".
            Essas duas visões do futuro mundial parecem ocupar,
            esquematicamente, extremos da discussão sobre a atual fase da
            internacionalização e seus desdobramentos. Ambas, diga-se,
            fazem referência a processos reais, que não devem ser ignorados.
            Realmente, nenhum olhar poderá apreender as transformações
            por que passa o mundo sem ver o papel desempenhado pela
            informática, pela robótica, pelas comunicações por satélite, pela
            Internet e pelos modernos meios de transporte.
            Da mesma forma, seria impossível ignorar que os
            norte-americanos dominam a indústria cultural em escala
            internacional e vendem sua cultura e seus produtos nos quatro
            cantos do mundo.
            Alguns fatos, porém, conspiram tanto contra o fetiche e a apologia
            da técnica quanto o determinismo militante.
            Como observa Renato Ortiz em seu livro "Mundialização e
            Cultura", o clima de euforia da literatura sobre meios de
            comunicação e informática incorre em simplificações e traz de
            volta a atitude do homem do século 19, quando afluía às
            exposições universais, "extasiando-se com as maravilhas dos
            inventores: fonógrafo, elevador, esteira rolante, automóvel".
            É humano que a fantasia responda a estímulos -e são muito
            estimulantes as novidades científicas antes de estarem
            concretamente incorporadas à vida social. É também muitas vezes
            incontível, ante as façanhas tecnológicas, a tentação de investi-las
            de faculdades como "formar um novo tipo de indivíduo", "moldar
            a consciência" ou "revolucionar o planeta".
            Por outro lado, não são menos simplificadoras algumas evidências
            recorrentes de que a cultura norte-americana impõe-se ao mundo
            para moldá-lo à sua imagem e semelhança.
            Um dos exemplos mais corriqueiros da inexorabilidade dessa
            americanização em escala mundial é a rede de lanchonetes
            McDonald's, embora a difusão da pizza italiana e da comida
            chinesa alcancem as mesmas proporções -livres, no entanto, da
            acusação de destruir hábitos alimentares autóctones e autênticos.
            A defesa da autenticidade cultural, subjacente ao ataque
            antiimperialista, é frequentemente sentimentalista e nostálgica. Traz
            à tona mitos de acolhimento, calor humano e proximidade que,
            como ironiza Mike Featherstone, em "O Desmanche da Cultura",
            sugerem a segurança mítica de uma infância deixada para trás.
            É natural que nesse mundo transtornado pela internacionalização e
            pelo caos informativo venha à tona a nostalgia da comunidade
            integrada, que ancora o indivíduo num espaço físico, afetivo e
            simbólico determinado. É esse lugar perdido -onde as relações
            sociais baseiam-se no face a face e onde florescem formas
            culturais "verdadeiras"- que muitas vezes se convoca
            subliminarmente para demonizar a expansão ocidental.
            Nessa modalidade de ecologia social o discurso preservacionista
            oscila de microculturas étnicas a grandes culturas nacionais,
            passando por classismos e regionalismos. Curiosamente,
            entretanto, uma das características importantes do que se entende
            hoje por cultura global é justamente a maior visibilidade de
            manifestações étnicas, regionalistas ou oriundas de sociedades
            "excluídas" -do cinema iraniano à literatura africana.
            Talvez nunca as nações ocidentais tenham-se visto, como hoje, na
            contingência de conviver com a diversidade cultural no interior de
            suas próprias fronteiras. Se a "invasão americana" é um tema
            importante na pauta da esquerda das periferias, a "invasão do
            Terceiro Mundo" também o é para a direita dos países centrais.
            Tome-se o caso exemplar da "world music", modo como passou
            a ser designado, inicialmente nos EUA, um conjunto relativamente
            heterogêneo de formas musicais originárias de diversas regiões do
            planeta. A rigor, essas músicas têm em comum apenas a
            vinculação a situações étnicas ou localistas, ainda que possam
            adotar procedimentos da modernidade: é o canto árabe, é a toada
            brasileira, são as misteriosas vozes búlgaras, as cantoras de
            Okinawa ou os batuques africanos.
            Note-se que o rótulo, amplo para abarcar manifestações de todos
            os continentes, convive, nas prateleiras dos magazines, com
            categorias tradicionais, de gênero ou origem, tais como bossa
            nova, jazz latino, pop inglês ou reggae jamaicano.
            Essa sobreposição é sugestiva e ajuda a compreender o estágio
            atual da mundialização cultural: um processo em curso, sugerido,
            mas não concluído, no qual formas culturais nacionais ou locais
            entram crescentemente em contato, desterritorializam-se, geram
            mediações e criam "terceiras culturas".
            As "terceiras culturas", na definição de Featherstone, são um
            "conjunto de práticas, conhecimentos, convenções e estilos de
            vida que se desenvolvem de modo a se tornar cada vez mais
            independentes dos Estados-Nação".
            Dessa forma, retornando ao exemplo da alimentação, o sushi-bar,
            o ligue-pizza, o delivery chinês ou o Big Mac já não podem ser
            vistos a partir de seus antigos vínculos orgânicos com as culturas
            de origem ou Estados-Nação. Passam a fazer parte de uma
            cultura culinária "fast-food", à qual pode-se recorrer com
            naturalidade, na China, no Uruguai ou nos EUA. Uma culinária
            desterritorializada, que transita por um novo (e sobreposto)
            "território" -que pode ser designado de global.
            "Terceiras culturas" formam-se como mediação em diversas áreas
            e põem em xeque a idéia de que as vítimas periféricas da ofensiva
            do Império têm apenas duas alternativas -deixar-se subjugar ou
            erguer fortalezas para evitar sua incorporação à modernidade
            ocidental.
            A exposição, por exemplo, dos negros das periferias urbanas
            brasileiras ao contato com a cultura norte-americana não gera
            simplesmente a destruição do samba 'àutêntico" e a difusão de
            clones domésticos de Pai Tomás. Pode engendrar, como
            acontece de fato, subculturas de contestação, nas quais
            informações do rap ou do funk mesclam-se a referências locais e
            geram uma terceira forma -eis aí, por sinal, o princípio da
            Antropofagia, a estratégia do modernista Oswald de Andrade
            para a inserção brasileira na cultura mundial.
            Não se deve perder de vista que, em muitas oportunidades, a
            própria cultura dita autêntica torna-se, por processos internos, um
            simulacro inofensivo de autenticidade (como os desfiles das
            escolas de samba), revelando-se inoperante para expressar novos
            anseios e realidades. Aqui, o elemento estrangeiro pode vir a ter,
            a depender do modo de apreensão, um papel revitalizador.
            É, portanto, duvidosa a idéia de que o imperialismo cultural
            simplesmente suprime as culturas locais para implantar em seu
            lugar a face do destruidor. Essas teorias, em comum com outras
            que apregoam a uniformização sem arestas da indústria cultural,
            imaginam a vigência de um sistema monolítico, capaz de manipular
            platéias em escala planetária. Tendem também a considerar os
            efeitos negativos dos meios modernos evidentes por si próprios.
            Seja qual for a perspectiva que se adote, o fato é que está em
            curso uma nova etapa da internacionalização, embora seu futuro
            permaneça em aberto. Não há dúvida de que o mundo, finito e
            cognoscível, é cada vez mais percebido, ele mesmo, como um
            lugar; não há dúvida de que, paralelamente às culturas nacionais,
            gera-se uma cultura "global", na qual indivíduos dos quatro cantos
            do planeta podem minimamente se reconhecer; não há dúvida de
            que essa cultura global deriva da intensificação dos contatos entre
            povos e civilizações, por sua vez vinculada à expansão econômica
            e técnica.
            Se o mundo, entretanto, como resultado desse processo, será o
            território de um único grande império, se encontrará mediações
            para a convivência multicultural ou se será abalado por novos
            cismas e cataclismas -isso, só o tempo dirá.



            Empresa global troca de país como se
            troca de roupa

            CÉLIA DE GOUVÊA FRANCO
            da Reportagem Local

            O filme publicitário começa com meninos jogando futebol na rua.
            Logo essas cenas passam a ser intercaladas, de forma simétrica,
            com imagens de Ronaldinho jogando pela seleção brasileira.
            Ronaldinho dribla um jogador, um menino dribla outro menino;
            Ronaldinho rouba a bola, o lance se repete com os meninos. Até
            que Ronaldinho faz um gol, e um dos meninos acerta uma bolada
            na janela de um carro, quebrando-a.
            Uma típica cena brasileira usada para vender uma marca
            americana, a Nike? Mais do que isso, essa é a descrição de um
            anúncio criado por uma agência norte-americana, a Wieden &
            Kennedy, para vender no Brasil os produtos de uma empresa
            também norte-americana, a Nike, fabricados em um país asiático,
            como Vietnã ou Indonésia.
            Com um faturamento de US$ 9,2 bilhões no ano fiscal terminado
            em maio de 1997, a fabricante de roupas e calçados esportivos
            Nike acabou se tornando, nos últimos anos, um dos melhores
            exemplos de uma empresa global, por sua estratégia de produção
            e de uso intensivo dos instrumentos de marketing.
            A Nike não é dona de nem sequer uma fábrica, não emprega
            nenhum operário, não tem nenhuma máquina.
            Toda a sua produção é feita sob encomenda em fábricas que
            pertencem a outras empresas, a partir de modelos de tênis
            desenhados por especialistas nos Estados Unidos.
            Atualmente, cerca de 80% dos calçados Nike são feitos em
            fábricas de cinco países asiáticos: Vietnã, Indonésia, China,
            Coréia do Sul e Taiwan.
            A empresa nunca teve fábricas. Por isso tem condições de mudar
            o local de fabricação dos seus produtos com enorme facilidade se
            julgar que é mais vantajosa a produção em outro lugar -o que não
            seria possível se tivesse investido na construção e na instalação de
            fábricas.
            Nos últimos cinco anos, como resultado dessa política, a Nike
            desistiu de fazer negócios com 20 fábricas na Coréia do Sul e em
            Taiwan, países onde os salários dos operários subiram, e passou a
            operar com 35 novas fábricas na China, na Indonésia e na
            Tailândia, onde os salários são bem mais baixos.
            Além dessa mobilidade, outra característica marcante de uma
            empresa globalizada que fica evidente na Nike é o investimento
            pesado em marketing.
            "Nós não sabemos nada sobre indústria. Entendemos de
            marketing e design", explica Neal Lauridsen, vice-presidente da
            Nike para a região asiática, citado no livro "Global Dreams", de
            Richard Barnet e John Cavanagh, dois especialistas americanos
            em globalização.
            Usualmente, a empresa -ou as companhias que a representam em
            um determinado país ou região- investe pelo menos 10% do seu
            faturamento na divulgação da sua marca, que se tornou tão
            conhecida que hoje é dispensável o nome Nike nas campanhas
            publicitárias. Bastam o slogan "Just Do It" e a logomarca.
            Patamar
            Empresas globais estão um passo adiante -ou muitos passos
            adiante- das multinacionais.
            Existe muita polêmica entre economistas e cientistas sociais sobre
            as melhores definições para companhias multinacionais,
            transnacionais e globais, que variam conforme a posição, até
            política, de cada um sobre globalização.
            Para Gilberto Dupas, consultor de empresas e especialista no
            tema globalização, haveria um certo consenso de que não há, de
            fato, diferenças entre o que é uma empresa multinacional e uma
            empresa transnacional.
            A definição desses dois conceitos seria a de um agente econômico
            produtor de bens ou serviços, cuja base de produção esteja em
            mais de um país e/ou o mercado seja mais do que um único país,
            explica Dupas.
            Já uma empresa globalizada ou global seria aquela que opera
            seguindo uma lógica operacional mundial, cujo objetivo seja
            maximizar benefícios e minimizar custos não importando onde
            esteja a base de produção e que obedeça uma estratégia de
            marketing única para todos os países onde vende seus produtos.
            Um exemplo disso seria a Coca-Cola, cita Dupas.
            Para ele, ainda não existe nenhuma empresa brasileira que mereça
            o rótulo de global. "Um exemplo do que poderia ser uma empresa
            brasileira globalizada seria um fabricante de sapatos que vendesse
            seus produtos em um grande número de países e que os
            fabricasse onde os custos de produção fossem os menores. Seria
            uma Azaléa multiplicada por 10."
            Outros especialistas diferenciam uma multinacional de uma
            transnacional. Um estudo recente da União Européia sobre a
            globalização da tecnologia e da economia, por exemplo, chega à
            conclusão que o que diferenciaria os dois conceitos seria o
            mercado alvo para seus produtos.
            No caso de uma empresa transnacional, o mercado seria uma
            determinada região do mundo, como a Europa, enquanto para
            uma multinacional o mercado seria o planeta inteiro.
            Uma característica essencial da empresa global atualmente seria a
            facilidade para identificar locais onde existam as condições mais
            atraentes para suas operações. Ficou muito mais fácil tomar
            conhecimento sobre as condições de trabalho em um determinado
            país e compará-las com a situação em outras partes do mundo.
            Com os serviços de informação on line, por exemplo, o aumento
            nas taxas de juros adotado por um governo (que tende a
            encarecer os custos de produção e a favorecer as aplicações
            financeiras) chega ao conhecimento dos investidores e
            empresários de forma imediata.
            Somada à crescente desregulamentação não só dos mercados
            financeiros, mas também em outras áreas, inclusive no que se
            refere à legislação trabalhista, ficou praticamente liberada a
            movimentação de capital, trabalho e bens entre os países.
            O exemplo já clássico é, de novo, a Nike. Como a empresa não
            possui fábricas, não tem dinheiro investido em máquinas e imóveis
            nem emprega diretamente operários e gerentes das fábricas.
            Qualquer tendência de elevação dos custos de produção em um
            determinado país pode levar a empresa a trocá-lo por um outro
            onde seja mais barata a fabricação dos seus calçados.
            Um dos efeitos esperados da crise dos mercados financeiros das
            últimas semanas é um rearranjo de investimentos em fábricas,
            passada a rodada de aumento de juros e desvalorização de
            moedas. Investimentos previstos para um país poderão ser
            cancelados, por exemplo.
            Nova onda de invasão
            Como consequência da facilidade de mudar de um país para
            outro, nunca teria havido uma tendência tão forte quanto a atual
            de grandes grupos internacionais "invadirem" outros países e
            comprarem empresas locais ou de transferirem suas bases de
            operação de um país para outro.
            Dados do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais)
            mostram, por exemplo, que em 1996, na França, 3.400 pequenas
            e médias empresas foram vendidas. Nos Estados Unidos,
            ocorreram 10 mil operações de fusão e incorporação,
            movimentando mais de US$ 600 milhões.
            No Brasil, no primeiro semestre deste ano, ocorreram 172 fusões,
            incorporações e joint ventures, segundo a empresa de consultoria
            KPMG Peat Marwick, indicando um aumento de 25% em
            relação aos seis primeiros meses de 1996.
            "No circuito das chamadas empresas transnacionais, o
            investimento em fábrica deixou de ser privilegiado. A prioridade
            passou a ser investir em marcas. Muitas vezes, a empresa global
            compra uma companhia local apenas para ganhar uma fatia do
            mercado, por causa da marca", diz Helio Mattar, presidente da
            GE-Dako, a empresa formada no ano passado, quando o grupo
            norte-americano GE comprou uma participação majoritária na
            fábrica de fogões Dako, de Campinas (SP), líder de mercado.
            Hoje, as empresas transnacionais ocupam uma posição ímpar nos
            negócios internacionais: 40% ou 50% do comércio global
            refere-se a operações entre essas empresas, cita Dupas.
            O crescimento do número dessas companhias e dos negócios por
            elas realizados é apontado como uma das razões para a expansão
            do comércio internacional.
            No início dos anos 80, o comércio mundial de bens e serviços
            girava cerca de US$ 5 trilhões ao ano; hoje, aproxima-se dos
            US$ 14 bilhões, diz o Banco Mundial.
            Esses dados indicam que o comércio entre os países teve, nesse
            período, um ritmo de crescimento mais acentuado do que o da
            própria economia mundial.
            Um fator decisivo pra que isso tenha ocorrido foram as mudanças
            nas regras do jogo comercial internacional com as negociações no
            âmbito do antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), na
            chamada "Rodada Uruguai", que resultaram em uma redução
            generalizada de tarifas (espécie de imposto de importação
            adotado pelos governos).
            Condições de trabalho
            O processo de expansão das empresas multinacionais também
            provocou polêmica por causa das condições de trabalho nas
            fábricas desses grupos instaladas em países que não se destacam
            pelo respeito aos direitos dos trabalhadores.
            Nos Estados Unidos e na Europa, surgiram nos últimos anos
            movimentos de boicote a uma série de produtos de fábricas
            desses grupos instaladas em países que não se destacam pelo
            respeito aos direitos dos trabalhadores. A Nike foi um dos
            principais alvos desses movimentos.
            As empresas, de seu lado, têm procurado desmontar -com maior
            ou menor grau de sucesso- essas críticas.
            Recentemente, a Nike convidou uma ONG (organização
            não-governamental), a GoodWorks International, para fazer um
            levantamento sobre fábricas que fabricam seus calçados em três
            países asiáticos: Vietnã, Indonésia e China.
            A GoodWorks apresentou suas conclusões: embora as fábricas
            apresentem condições de trabalho adequadas, "o conceito de
            'direitos trabalhistas' não é bem entendido ou adotado nos três
            países onde a Nike e seus principais competidores produzem
            calçados e outros itens".
            Em contrapartida, são os consumidores "que dão legitimidade à
            tendência de globalização, na medida em que querem, exigem
            mesmo produtos mais baratos e de melhor qualidade", afirma
            Dupas.
            Muitas vezes é esse mesmo consumidor, no papel de trabalhador,
            que sofre com a política de empresas transnacionais de fechar
            uma determinada fábrica ou de promover demissões, alegando a
            necessidade de reduzir seus custos para aumentar a
            produtividade.



            Globalização aprofunda o abismo entre
            ricos e pobres

            JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
            da Reportagem Local

            Desde 1960, quando os ricos ganhavam 30 vezes mais que os
            pobres, a concentração da renda mundial mais do que dobrou.
            Em 1994, os 20% mais ricos abocanharam 86% de tudo o que foi
            produzido no mundo. Sua renda era 78 vezes superior à dos 20%
            mais pobres.
            Esse é o lado menos conhecido da globalização. Ano a ano o
            fosso que separa os incluídos dos excluídos vem aumentando: os
            ricos ficam mais ricos, e os pobres, mais pobres. Em 34 anos, o
            quinhão dos excluídos na economia global minguou de 2,3% para
            1,1%. A concentração chegou ao ponto de o patrimônio conjunto
            dos raros 447 bilionários que há no mundo ser equivalente à renda
            somada da metade mais pobre da população mundial -cerca de
            2,8 bilhões de pessoas.
            "Supõe-se que uma maré de riqueza levará todos os barcos. Mas
            alguns navegam melhor do que outros. Os iates e transatlânticos
            estão avançando, em função das novas oportunidades, mas as
            balsas e botes a remo estão fazendo água, e alguns afundam
            rapidamente."
            É o que diz o Relatório da Organização das Nações Unidas sobre
            o Desenvolvimento Humano, de 1997. O texto faz um balanço
            dos efeitos da globalização sob a ótica dos perdedores: "Os
            países menos adiantados podem perder até US$ 600 milhões por
            ano, e a África ao sul do Saara, US$ 1,2 bilhão".
            As causas apontadas pela ONU são várias: das barreiras
            alfandegárias mais punitivas às exportações dos países
            subdesenvolvidos às leis de proteção de patentes que dificultam o
            acesso das nações pobres a novas tecnologias.
            O comércio mundial cresceu 12 vezes no pós-guerra e chegou a
            US$ 4 trilhões por ano nesta década. Mas foi também o vilão que
            mais acentuou as desigualdades entre países ricos e pobres no
            processo de globalização. Com 10% da população do planeta, os
            países mais pobres detêm apenas 0,3% do comércio mundial.
            Pior: é a metade do que detinham há 20 anos.
            Para o conjunto dos países em desenvolvimento, a globalização
            impôs perdas comerciais de US$ 290 bilhões entre 1980 e 1991.
            Nesse mesmo período, o preço dos produtos básicos (sua
            principal exportação) caiu 45%.
            Os mecanismos que deveriam minimizar esses impactos resultaram
            ineficientes. A Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e
            Comércio "deixou intacta a maior parte da proteção da indústria e
            da agricultura dos países industrializados", diz a ONU. Os
            produtos exportados pelo Primeiro Mundo tiveram uma redução
            muito mais forte das tarifas que lhe eram impostas do que as
            exportações do Terceiro Mundo: -45% contra -20% a -25%.
            Diante da perspectiva de diminuição, mesmo que apenas parcial,
            das tarifas alfandegárias, os países desenvolvidos acharam outros
            meios de proteger seus mercados. De 1989 a 1994, eles
            dobraram o número de barreiras sanitárias e medidas antidumping.
            Ao mesmo tempo, reforçavam o dumping em seu próprio quintal.
            Em 1995, os países ricos gastaram nada menos do que US$ 182
            bilhões em subsídios à agricultura -ou seja, metade do valor de
            tudo o que colheram.
            Segundo a ONU, os subsídios dos ricos prejudicam o Terceiro
            Mundo de várias formas: 1) mantêm baixos os preços
            internacionais, desvalorizando as exportações dos países pobres;
            2) excluem os pobres de vender para os mercados ricos; 3)
            expõem os produtores pobres à concorrência de produtos mais
            baratos em seus próprios países.
            Há estimativas de que, se os países desenvolvidos reduzissem os
            subsídios agrícolas em 30%, os países em desenvolvimento
            ganhariam US$ 45 bilhões por ano.
            Além do comércio, o fluxo internacional de recursos aprofunda as
            disparidades mundiais. Mais de 90% dos investimentos
            estrangeiros diretos vão para Japão, EUA, Europa e oito
            províncias da China.
            Todos os demais países, com 70% da população mundial, ficam
            com menos de 10% dos investimentos. "Isso significa que regiões
            enormes do mundo estão ficando excluídas dos avanços
            tecnológicos", registra o relatório da ONU.
            Com crédito reduzido, os países pobres pagavam até a década
            passada taxas de juros quatro vezes maiores do que as pagas
            pelos países ricos.
            Com tantas desvantagens competitivas, a imensa maioria dos
            perdedores do processo de globalização tinha que estar nos
            países em desenvolvimento: quase 1/3 de seus habitantes (1,3
            bilhão de pessoas) vive com menos de US$ 1 por dia.
            Mas os perdedores citados no relatório da ONU não estão só no
            Terceiro Mundo. Cerca de 100 milhões de pessoas vivem abaixo
            da linha de pobreza nos países desenvolvidos. Em algumas dessas
            nações, como o Reino Unido, esse número tem crescido.
            A quantidade de pobres nos países ricos varia de 3% da
            população, na Noruega, a 37%, na Irlanda. Os EUA ficam no
            meio do caminho, com 14%.
            O fantasma que ronda suas economias globalizadas é o
            desemprego. As taxas subiram a níveis que não eram vistos desde
            os anos 30. Resultado: há cerca de 37 milhões de desempregados
            nos países desenvolvidos.
            Os mais otimistas, como o consultor norte-americano Simon
            Forge -famoso por suas projeções sobre os impactos da
            revolução tecnológica nas comunicações e na economia-, dizem
            que a perda de empregos no Primeiro Mundo é a contrapartida
            da criação de postos de trabalho nos países em desenvolvimento.
            Ele atribui isso ao fato de as nações emergentes estarem
            avançando na educação de seus habitantes -o analfabetismo caiu
            de 57% para 30% entre 1970 e 1994 nesses países- e terem
            custos de produção menores (inclusive salários).
            "O resultado será menos empregos nos países desenvolvidos,
            enquanto os países em desenvolvimento crescerão em poder
            econômico nos próximos 20 anos", escreveu Forge num alentado
            estudo para o Banco Mundial.
            De fato, entre 1989 e 1993, a produtividade dos trabalhadores
            mexicanos saltou de 1/5 para 1/3 da dos norte-americanos -em
            parte devido à chegada, do exterior, de investimentos e novas
            tecnologias orientados à produção para o mercado dos EUA. A
            diferença de rendimento entre os dois países, porém, não diminuiu:
            os salários mexicanos seguem sendo 1/6 dos pagos aos
            norte-americanos. Trocando em miúdos, a globalização beneficiou
            mais o consumidor dos EUA do que o trabalhador do México.
            Por essas e por outras, Jeremy Rifkin, autor do best-seller "O Fim
            do Trabalho", sustenta que a economia global está passando por
            uma transformação comparável à Revolução Industrial.
            Em artigo recente para a revista "Mother Jones", ele escreveu:
            "Estamos nos primeiros estágios da mudança do 'trabalho em
            massa' para um altamente especializado 'trabalho de elite',
            acompanhada da crescente automação na produção de bens e
            serviços".
            Rifkin calcula que, só nos EUA, cerca de 90 milhões de empregos
            (a força de trabalho norte-americana é de 124 milhões de
            pessoas) estão vulneráveis à automação.
            Nesse ponto, o relatório da ONU concorda mais com Rifkin do
            que com Forge. O texto cita estudos que estimam que o impacto
            da concorrência com a mão-de-obra barata dos países pobres
            seja responsável por apenas 10% do desemprego industrial dos
            países ricos.
            "A redução do gasto fiscal (dos governos) e a mudança
            tecnológica tiveram um efeito muito maior sobre o desemprego e a
            desigualdade", assinala o relatório.
            Na direção oposta à seguida até agora pela globalização, o texto
            propõe seis políticas nacionais para os países tentarem distribuir
            mais equitativamente os benefícios da integração mundial.
            Entre elas, sugere que os governos adotem critérios mais seletivos
            na hora de abrir as fronteiras à competição internacional, invistam
            na educação da população mais pobre e fomentem as pequenas
            empresas. Em paralelo, a ONU recomenda aos países em
            desenvolvimento que formem blocos econômicos regionais: "Eles
            podem aumentar o comércio, facilitar o fluxo financeiro e melhorar
            os meios de transporte".
            A ONU ainda defende sete iniciativas em nível mundial para
            igualar as regras do jogo. Destacam-se a proposta de um
            mecanismo para controle e vigilância com mais agilidade da
            liquidez internacional, mudanças nas regras do comércio mundial
            em benefício dos países pobres e uma associação de empresas
            multinacionais para fomentar a redução da pobreza.
            A última proposta se baseia numa constatação surpreendente: das
            100 maiores economias do mundo, 50 são megaempresas. Como
            a GM, cujo faturamento em 1994 foi superior ao PIB de países
            como Turquia, Dinamarca e África do Sul.
            É uma tendência em alta. Com as constantes fusões de gigantes
            empresariais, vai aumentar a importância das multinacionais, em
            detrimento dos Estados nacionais. E é por essa razão que já há
            quem prefira chamar a globalização de era da "englobação".


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